
Bibi Ferreira e Paulo Autran na montagem "Minha Querida Lady", de 1962, primeira adaptação da Broadway no Brasil
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O
sucesso dos musicais no Brasil está longe de ser um fenômeno recente.
Desde a primeira metade do século 20, com o teatro de revista, até hoje,
com os suntuosos cenários e figurinos trazidos da Broadway, os
espetáculos teatrais cantados agradam platéias no país. Se há diferença
relevante entre os dois momentos, esta é a profissionalização do novo
mercado de musicais - que já levou mais de três milhões de espectadores
aos teatros e tem até
curso profissionalizante para atores do gênero.
Antes do primeiro espetáculo da Broadway ser trazido para São Paulo (
"Minha Querida Lady",
adaptação de "My Fair Lady" protagonizada por Paulo Autran e Bibi
Ferreira em 1962), o Rio de Janeiro já tinha uma forte tradição do
chamado teatro de revista, gênero em que o enredo servia de ligação
entre esquetes cômicos, musicais ou coreografados.
Após um
período de glória nas décadas de 50 e 60, o musical de entretenimento
perdeu espaço para uma dramaturgia mais politizada, notadamente em
criações de Chico Buarque como "Roda-Viva",
"Ópera do Malandro", "Calabar" e
"Gota D'Água".
O produtor e letrista Claudio Botelho, responsável pela tradução de
quase todas as montagens recentes de espetáculos da Broadway, acredita
que o período de repressão militar fez com que o teatro se transformasse
em um "lugar de resistência". "É por isso que algumas pessoas do meio
ainda ficam surpresas que os musicais estejam fazendo sucesso", afirma.
Nos anos 80 e início dos 90, algumas produções musicais esparsas tiveram êxito, como
"A Chorus Line",
de 1983, na qual Cláudia Raia apareceu aos 16 anos, e "Cabaret", de
1989, ambas em São Paulo. Responsável pela produção das duas montagens, o
diretor Jorge Takla recorda que as dificuldades eram muito maiores do
que hoje: "Não tínhamos lei de incentivo, nem elenco preparado, nem
lugares que comportassem o espetáculo". Takla dá como exemplo o Teatro
Sérgio Cardoso, onde foi montado "A Chorus Line" mesmo sem o espaço
necessário para acomodar a orquestra de um musical. "Foi um teatro mal
concebido para isso, infelizmente."
O Rio de Janeiro também não
era uma seara fértil para musicais na primeira metade dos anos 90. "Hoje
existem esses orçamentos milionários, mas, quando fui montar 'Hello
Gershwin' com o Marco Nanini em 1991, tivemos as mesmas dificuldades que
todo mundo: teatro pequeno, horário alternativo, nenhum dinheiro",
recorda Claudio Botelho.

Cena de "Rent", montagem de 1999 que deu início a uma nova série de espetáculos da Broadway em São Paulo
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Retomada
A
primeira etapa da volta dos musicais ao gosto do público aconteceu no
Rio de Janeiro, com as peças montadas em torno da vida de personalidades
consagradas da música, utilizando suas canções como fio condutor do
enredo.
"Elas por Ela",
de 1989, foi um protótipo do gênero, com Marília Pêra interpretando
diversas cantoras brasileiras. Mas é a partir de meados dos anos 90 que
musicais como "O Samba de Valente Assis" (sobre Assis Valente),
"O Abre-Alas" (Chiquinha Gonzaga) e
"Somos Irmãs"
(Linda e Dircinha Batista) estabelecem um público cativo por esse tipo
de montagem - que, por sinal, faz sucesso até hoje, tanto no Rio como em
outras capitais, em peças como
"Cauby! Cauby!" (2006),
"Renato Russo" (2007) ou
"Divina Elizeth" (2008).
Com a estréia de
"Rent"
em 1999, no Teatro Ópera, em São Paulo, tem início a segunda etapa do
renascimento dos musicais: as adaptações da Broadway. Os orçamentos
generosos, auxiliados por leis de renúncia fiscal, permitiram a
realização de grandes montagens e aceleraram a profissionalização no
setor. No elenco de "Rent" já podiam ser encontrados alguns atores que
fariam carreira em musicais: o protagonista Daniel Ribeiro, que dirigiu
"Cazas de Cazuza" em 2000; Alessandra Maestrini, hoje no programa "Toma Lá Dá Cá" da TV Globo, que teria papel de destaque em
"Les Misérables"; e Bianca Tadini, de
"O Fantasma da Ópera",
"O Mágico de Oz" e
"West Side Story", entre outros.
Não
foi um começo unânime, porém: o tradutor Claudio Botelho dá "graças a
Deus" por não ter participado da montagem de "Rent", que para ele "não
era séria". A atriz Bianca Tadini, que fez parte do elenco da peça,
concorda que esta deva ser encarada como um dos "testes" que a
multinacional Time 4 Fun (ex-CIE) fez antes de "Les Misérables", seu
primeiro grande investimento (US$ 3,5 milhões, quase R$ 5,9 milhões em
valores atuais). Os outros testes aconteceram em 2000, com resultados
animadores:
"Vitor ou Vitória", dirigido por Jorge Takla, atraiu 80 mil espectadores;
"O Beijo da Mulher-Aranha", com Cláudia Raia e Miguel Falabella no elenco e direção de Wolf Maia, outros 120 mil.
Broadway paulistana
Com a estréia de "Les Misérables", em 2001, os números começaram a ficar realmente superlativos. A começar pela reforma do
Teatro Cine-Paramount,
no centro de São Paulo, bancada pela CIE e pelo Grupo Abril ao custo de
R$ 12 milhões (a partir de então, a construção passou a se chamar
Teatro Abril). Coincidentemente, além de ter sido o primeiro cinema
sonoro da América Latina e de ter abrigado os festivais da TV Record nos
anos 60, foi no mesmo Teatro Abril que aconteceu a montagem de "Minha
Querida Lady" em 1962.

Palco de "Les Misérables" trazia inovações como uma base giratória e maior vão livre para os cenários
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Jorge
Takla, que em 2002 passaria a comandar a divisão de teatro da CIE,
considera a reforma do Teatro Abril um marco: "Era uma coisa pela qual
lutávamos durante muitos anos. Foi muito rico não só para os musicais,
que puderam ser apresentados com qualidade, mas também para todos os
profissionais envolvidos, que puderam aprender muito com a tecnologia
que foi trazida".
O espetáculo inaugural do Teatro Abril, "Les
Misérables", atraiu 350 mil espectadores nos 11 meses que ficou em
cartaz. A estrutura, com palco giratório e uma equipe de 150 pessoas,
era algo inédito no teatro nacional - incluindo os salários, muito acima
do praticado no país. A direção ficou a cargo do inglês Ken Kaswell e
do brasileiro Helzer de Abreu, que já tinha participado de "Rent", e a
produção coube ao argentino Billy Bond, ex-vocalista da banda Joelho de
Porco e diretor de shows Ney Matogrosso nos anos 70.